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Aceitar que sou adito

Foto do escritor: ReCareReCare




Despedi-me das pessoas que mais amo, como se aquele fosse o último instante das nossas vidas. Tinha a certeza de que nada mais havia a fazer, e que não ia levar mais esta morte para casa. Declarei ao mundo e a mim que estava derrotado e pronto para o fim… foi o melhor erro da minha vida.


Aceitei vir para tratamento, para acreditar que até nos últimos momentos lutei, que não me rendi. Recusei que depois de uma longa noite, pode vir o sol, tímido, ainda que para um dia frio e curto.

Quis abrir os olhos numa última madrugada, respirar um novo ar, sentir o sol a aquecer-me a pele, voltar a ter fome… mas tive medo. Afinal estava rendido.


No fundo do poço só tinha mentiras, racionalizações e controlo.

A culpa: - “Quando é que decidi ter raízes no inferno?”; “Quando é que decidi usar os outros em vez de os amar?”; “Porque me odeio tanto e sou o centro do universo?”


A indiferença valeu-me um convite para sair de tratamento. Eu tinha de querer mudar.

Abanei e de alguma forma senti que a minha vida importava. Mas importava porquê se me intuía um nada humano e um tudo insano?


Disseram-me que não escolhi ser assim, que tinha uma doença chamada adição. Não aceitei. Achava que precisava de ajuda só nesta fase e depois tudo ficaria bem. Mas percebi que sempre que olhava para o meu problema com as drogas desta forma, recaía.


Nunca tinha percebido porquê. A culpa era das outras pessoas, dos trabalhos que não aguentava, da dureza da vida, da família, da medicação que não fazia efeito, da insatisfação, de achar que merecia sempre mais… o problema não estava nos outros, mas em mim!


Por sempre me achar especial, aceitar que sou adicto, foi muito difícil e ainda faz parte da minha luta diária. –“Isso é para os outros, porque eu até me consigo controlar.” Sim, a adição manipula até desta singular forma.


Aceitei.


No meu íntimo fiquei consciente desta duríssima realidade, como se existissem dois de mim: uma pessoa que quer a vida e outra que quer a morte consciente, o entorpecimento, o não sentir.


De manhã, nos primeiros raios de sol, agradecia a Deus por estar em luta comigo. Levantava as mãos ao céu mostrando tudo o que tinha: uma mão cheia de defeitos de carácter e outra de nada. –“Obrigado por tudo o que tenho, concede-me mais um dia de guerra.” Comovia-me a paz desses dias. Descubro aos poucos a humildade.


Renasci. Empurrado, rasguei uma placenta de sujidade. Gritei. Fiquei descarnado, de ossos amostra, nu. Vulnerável, fui honesto até quando doía.


Surpreso por um “eu” que desconhecia, o melhor é possível, afinal.


Não estou sozinho. Seguram-me pela mão e apontam um caminho. A sugestão acatada acontece. Isto não é um remendo, é todo um pano novo. Ver este “novo” a acontecer dá-me mente aberta e boa vontade, para trabalhar o meu “agora”, sem expectativas no futuro.


Depois de aceitar a adição como parte maior da minha vida, aceito-me agora como sou: se antes o meu ego, que não cabia no universo, só me trazia frustração e tristeza, agora estou apenas contente por este quase nada que sou.


Passou já algum tempo depois destes dias.

Descobrir a minha vulnerabilidade foi a melhor riqueza que aconteceu na minha vida, porque dá vigor a todas as outras coisas boas que afinal tenho.

Mas transporto este tesouro num fino vaso de barro, frágil e facilmente quebrável.

Hoje de manhã, nos primeiros raios de sol agradeci a Deus por continuar em luta comigo. Levantei as mãos ao céu, pedi mais um dia de guerra e disse


Obrigado por todos estes dias. Mesmo por aqueles em que não senti paz.


Um adicto em recuperação.

Se te identificas com estas palavras e precisas de ajuda, estamos aqui para ti.


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